Isaías 58.6-7
JEJUMRev. Cleverson Gilvan
INTRODUÇÃO.
Neste estudo não discutiremos aspectos que, segundo nosso propósito aqui, julgamos secundários. Como por exemplo, a questão de jejuns parciais e totais, ou ainda, preparação e entrega. Como é este nosso primeiro contato com o assunto, discutiremos, a priori, a sua prática no meio cristão.
CONCEITUAÇÃO
A palavra grega (nhstei>a) tem o sentido de abstinência. O termo dá a idéia de deixar de comer por falta, voluntariamente ou por motivos religiosos - segundo James Strong no seu dicionário Greek Dictionary Of The New Testament.
John Davis o conceitua simplesmente como uma abstinência de alimentação ou o espaço de tempo em que se dá o jejum, que pode ser voluntário ou involuntário.
A PRÁTICA DO JEJUM NO AT
A linguagem do Pentateuco é ambígua quando trata de Jejum. A ausência do termo pode sugerir, num primeiro momento, que não havia nenhuma espécie de prescrição. Mas há quem sustente que expressões como “Afligireis as vossas almas” de Lv. 16.29, devem ser entendidas como referências ao jejum, o que parece razoável conforme Atos 27:9 “Depois de muito tempo, tendo-se tornado a navegação perigosa, e já passado o tempo do Dia do Jejum, admoestava-os Paulo,” e Isaías 58:3 “dizendo: Por que jejuamos nós, e tu não atentas para isso? Por que afligimos a nossa alma, e tu não o levas em conta? Eis que, no dia em que jejuais, cuidais dos vossos próprios interesses e exigis que se faça todo o vosso trabalho.”. Dentre os sustentadores desta tese citamos John Gill e dentre os opositores John Davis.
Em alguns momentos da história do AT jejuns foram ordenados, como no tempo do profeta Zacarias, onde jejuns deveriam ser realizados no quarto, quinto, sétimo e décimo mês – (Zc. 8.19).
Não obstante, o que mais chama a nossa atenção são os jejuns voluntários. A primeira ocorrência é com Davi, que suplicou pela vida do seu filho com a mulher de Urias (2º Sm. 12.22). Depois disso vários outros exemplos são encontrados nas Escrituras – Ed. 8.21, Sl. 35.13. (para uma lista mais completa veja verbete “jejum” em Dicionário da Bíblia – John Davis).
Davis também observa que em casos de calamidades públicas eram proclamados jejuns - Jeremias 36:9 “No quinto ano de Jeoaquim, filho de Josias, rei de Judá, no mês nono, apregoaram jejum diante do SENHOR a todo o povo em Jerusalém, como também a todo o povo que vinha das cidades de Judá a Jerusalém.”. Existem vários outros textos.
Em várias ocasiões o jejum era proclamado no meio do povo de Israel – 2ª Rs. 25.3, Jr. 52.6 e etc...
Já no NT encontramos os fariseus jejuando duas vezes por semana. Contudo, devemos ressaltar que a maneira como eles conduziram os jejuns foi duramente censurada por Jesus.
A PRÁTICA DO JEJUM EM CREDOS E CONFISSÕES CRISTÃS
DIDAQUÉ – Um catecismo do Primeiro século
Ao falar sobre a celebração litúrgica o Didaqué ensina:
“Antes de batizar, tanto aquele que batiza como o batizando, bem como aqueles que puderem, devem observar o jejum. Você deve ordenar ao batizando um jejum de um ou dois dias.”.
E, posteriormente, falando sobre a frequência e a distinção do jejum cristão ele também declara: “seus jejuns não devem coincidir com os dos hipócritas. Eles jejuam no segundo e no quinto dia da semana. Porém, você deve jejuar no quarto dia e no dia da preparação.”. A CONFISSÃO DE FÉ DE AUGSBURGO – Um documento de tradição Luterana, séc. XVI – 1530
Como um documento de reação à doutrina católica suas posições são apologéticas. Veja:
“Os nossos são acusados falsamente de proibirem boas obras. Pois os seus escritos sobre os Dez Mandamentos bem como outros escritos provam que deram bom e útil ensino e admoestação a respeito de estados e obras cristãos verdadeiros, de que pouco se ensinou antes de nosso tempo. Insistia-se, ao contrário, em todos os sermões principalmente em obras pueris e desnecessárias, tais como rosários, culto de santos, vida monástica, romarias, jejuns e dias santos prescritos, confrarias, etc.”E ainda,
Em tempos anteriores ensinou-se, pregou-se e escreveu-se que diferença de comidas e tradições semelhantes instituídas por homens servem para merecer graça e satisfazer pelos pecados. Por essa razão se excogitaram diariamente novos jejuns, novas cerimônias, novas ordens e coisas semelhantes, e nisso se insistiu com veemência e energia, como se tais coisas fossem culto divino necessário pelo qual se merecesse graça se a gente o observasse e como se sua inobservância constituísse grande pecado. Disso resultaram muitos erros perniciosos na igreja.
Em primeiro lugar, com isso se obscurecem a graça de Cristo e a doutrina da fé, que o evangelho põe diante de nós com grande seriedade, insistindo vigorosamente que se considere o mérito de Cristo como algo de grande e precioso e se saiba que a fé em Cristo deve ser posta muito acima de todas as obras. Por isso São Paulo batalhou com veemência contra a lei de Moisés e as tradições humanas, para aprendermos que diante de Deus não nos tornamos piedosos mediante as nossas obras, porém somente pela fé em Cristo, que alcançamos a graça por amor de Cristo. Essa doutrina extinguiu-se quase que por completo com isso de se haver ensinado a merecer graça por jejuns prescritos, distinção de manjares, vestimenta, etc.
E é bem crível que alguns bispos foram enganados com o exemplo da lei de Moisés. Daí provieram tão inumeráveis ordenações: que é pecado mortal fazer trabalho manual em dias santos, ainda quando não haja ofensa a outros; que é pecado mortal omitir as horas canônicas; que alguns alimentos poluem a consciência; que jejum é obra com que se reconcilia a Deus;
CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINSTER – Um documento de tradição Reformada
Sem o espírito apologético dos Luteranos nesse particular, os teólogos de Westminster ensinaram:
“A leitura das Escrituras com o temor divino, a sã pregação da palavra e a consciente atenção a ela em obediência a Deus, com inteligência, fé e reverência; o cantar salmos com graças no coração, bem como a devida administração e digna recepção dos sacramentos instituídos por Cristo - são partes do ordinário culto de Deus, além dos juramentos religiosos; votos, jejuns solenes e ações de graças em ocasiões especiais, tudo o que, em seus vários tempos e ocasiões próprias, deve ser usado de um modo santo e religioso.”
Os teólogos de Westminster reconheciam o jejum como uma prática cristã recomendável, embora não o vissem como um instrumento de uso ordinário.
OS PRINCÍPIOS DE LITURGIA DA IGREJA PRESBITERIANA
Um importante documento da Igreja Presbiteriana do Brasil, aprovado pelo seu Supremo Concílio é o conhecido “Princípios de Liturgia”. Ali somos orientados quanto ao Jejum da seguinte maneira:
CAPÍTULO XI - JEJUM E AÇÕES DE GRAÇA - Art.24 - Sem o propósito de santificar de maneira particular qualquer outro dia que não seja o dia do Senhor, em casos muito excepcionais de calamidades públicas, como guerras, epidemias, terremotos, etc., é recomendável a observância de dia de jejum ou, cessadas tais calamidades, de ações de graças. Art.25 - Os jejuns e ações de graças poderão ser observados pelo indivíduo ou família, Igrejas ou Concílios.
Pelo menos podemos entender que a prática do jejum tem acompanhado os cristãos no decurso da história. Contudo, uma interpretação muitas vezes difusa e superficial tem contribuído para uma espécie de acetismo (a crença num corpo mal que precisa de purificação) e até mesmo de barganhas e trocas com Deus. Perceba que os documentos de tradição reformada o vêem como um recurso extraordinário. Aqui, vale lembrar que nas igrejas de tradição libertária e (pentecostal) ele é apresentado como um recurso ordinário.
TEXTOS QUE REQUEREM NOSSA ATENÇÃO
Marcos 9:29 Respondeu-lhes: Esta casta não pode sair senão por meio de oração [e jejum].
Mateus 17:21 [Mas esta casta não se expele senão por meio de oração e jejum.]
Ambos os textos apresentam problemas de variantes textuais e a narrativa no texto de Lucas 9.37-43 não fala sobre Jejum. O que nos leva a entender que há uma boa probabilidade desta terminologia ter sido inserida posteriormente por um copista.
Contudo, ainda que admitamos que o termo compõe o escrito original (ou autógrafos), parece-nos que o cerne da mensagem não é a prática do jejum em si, mas a disposição mental e espiritual dos discípulos. Deste modo, o texto não estaria diretamente regulamentando a prática do jejum, mas admoestando os discípulos quanto à sua falta de uma fé viva (Lc. 9.41 – “Respondeu Jesus: Ó geração incrédula e perversa! Até quando estarei convosco e vos sofrerei? Traze o teu filho.” ).
Mateus 9:15 Respondeu-lhes Jesus: Podem, acaso, estar tristes os convidados para o casamento, enquanto o noivo está com eles? Dias virão, contudo, em que lhes será tirado o noivo, e nesses dias hão de jejuar.
Aqui devemos observar que embora os discípulos de João Batista usassem tal prática não há registro de que os discípulos de Jesus tenham jejuado enquanto desfrutavam da sua companhia.
O LUGAR DO JEJUM NA VIDA CRISTÃ – Uma análise sobre o prisma do seu uso no NT
Alguns pontos devem ser observados:
1) O Jejum foi observado por Jesus e por seus apóstolos.
Mateus 4:2 E, depois de jejuar quarenta dias e quarenta noites, teve fome.
Atos 13:2 E, servindo eles ao Senhor e jejuando, disse o Espírito Santo: Separai-me, agora, Barnabé e Saulo para a obra a que os tenho chamado.
2) Não há uma determinação peremptória acerca desta prática nas páginas do NT como no caso da oração.
1 Ts 5:17 Orai sem cessar.
Devemos considerar que o imperativo do verbo “orar” é recorrente nas páginas da Escritura, tendo sua maior incidência no Novo Testamento. Das 18 ocorrências pesquisadas 14 eram no Novo Testamento.
A única ocorrência imperativa do verbo “jejuar” está no AT em Et. 4.16 e não trata de uma normatização, mas de um pedido particular. Observe que esta ocorrência está fora do Pentateuco.
3) Em casos especiais ele pode ser observado como um recurso extraordinário, a semelhança do exemplo neotestamentário. Neste caso, deve-se observar as recomendações de Jesus dada aos seus discípulos. Ao regular o seu uso Jesus nos faz crer na possibilidade desta prática como um recurso espiritual. Veja abaixo:
Mateus 6.16-18
16 Quando jejuardes, não vos mostreis contristados como os hipócritas; porque desfiguram o rosto com o fim de parecer aos homens que jejuam. Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa. 17 Tu, porém, quando jejuares, unge a cabeça e lava o rosto, 18 com o fim de não parecer aos homens que jejuas, e sim ao teu Pai, em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará.
A) O verdadeiro jejum não deve criar imagens superficiais de santidade.
“…não vos mostreis contristados como os hipócritas…”
Veja Isaías 58:5 Seria este o jejum que escolhi, que o homem um dia aflija a sua alma, incline a sua cabeça como o junco e estenda debaixo de si pano de saco e cinza? Chamarias tu a isto jejum e dia aceitável ao SENHOR?
B) O verdadeiro jejum nos proporciona uma comunhão íntima e secreta com Deus
“…quando jejuares, unge a cabeça e lava o rosto …”
Não obstante reconhecermos a possibilidade de jejuns públicos, a comunhão é primeira e essencialmente pessoal e, a partir daí, comunitária.
O profeta Isaías (Is. 58.6-7) também insiste na idéia de que o verdadeiro jejum tem a ver com o abandono do pecado.
C) O verdadeiro Jejum atrai as bênçãos de Deus sobre as nossas vidas.
“…e sim ao teu Pai, em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará…”
Não que exista qualquer mérito no jejum, mas uma vez que nos dispomos a investir tempo em nossa vida espiritual, tornando-nos mais sensíveis às realidades celestes pelo desligamento das coisas materiais, Deus nos abençoa. E esta benção decorre da comunhão, da oração e da edificação.
Cl. 3.1-4
1 Portanto, se fostes ressuscitados juntamente com Cristo, buscai as coisas lá do alto, onde Cristo vive, assentado à direita de Deus. 2 Pensai nas coisas lá do alto, não nas que são aqui da terra; 3 porque morrestes, e a vossa vida está oculta juntamente com Cristo, em Deus. 4 Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então, vós também sereis manifestados com ele, em glória.
CONCLUSÃO
Devemos considerar ser, no mínimo curiosa, a falta de uma normatização explícita desta prática no NT. Parece que a prática era comum, como se tivesse vindo do AT sem muitas discussões (At. 27.9). Tudo isso nos leva a entender que embora não exista nada contrário ao seu uso nas Escrituras, a sua prática deve ser recomendada com moderação e discernimento espiritual, uma vez que a doutrina dos meios de graça nomeia apenas a oração, a palavra e os sacramentos como instrumentos ordinários de promoção da vida espiritual.
O jejum pode e deve ser usado como um recurso extraordinário, contudo, sempre acompanhado do devido entendimento das Escrituras, a fim de evitar um mau entendimento dos valores meritórios de Cristo e das conseqüentes comunicações graciosas de Deus.
ALGUNS CONSELHOS PRÁTICOS
1. O jejum pode ser praticado individualmente, em família ou com toda a igreja. Sempre lembrando que cada participante deve considerar a sua condição física e o cuidado espiritual (tempo de oração, leitura da palavra e comunhão, quando em grupo);
2. O propósito deve ser sempre o crescimento espiritual, que deve ser marcado pelo abandono do pecado e pelo desejo da santidade. Naturalmente, motivos de oração por crises, calamidades, enfermidades e outros podem e devem marcar os períodos de jejum.
3. Seu uso deve ser moderado e biblicamente orientado. Não devemos esquecer que os meios de graça são a oração, a palavra e os sacramentos. Estes devem ter lugar na vida diária da igreja, enquanto o jejum é um recurso extraordinário.
4. O jejum não é apenas uma dieta alimentar. Todas as atividades de entretenimento devem ser suspensas naquele dia a fim de se gastar tempo em oração.
5. “
Quando você for iniciar o seu período de jejum, e também quando findá-lo, faça de modo solene. Recolha-se a um lugar, separe uma porção das Escrituras para meditar durante o tempo em que estiver jejuando, ore e estabeleça o início e o fim deste momento de consagração. No momento de terminar o jejum, também recolha-se, ore e entregue o seu jejum, agradecendo a Deus, porque Ele lhe preservou capacitando-o a cumprir este santo propósito.”
Rev.Tokashiki